terça-feira, novembro 24, 2015

Comentando o documentário Filmes Ruins, Árabes Malvados: Como Hollywood Vilificou um Povo (Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People, 2007)


Por sugestão de um colega professor, assisti sábado ao documentário Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People. Não sei se houve um lançamento no Brasil, mas o título no Youtube para o arquivo (mal) legendado em português é Filmes Ruins, Árabes Malvados: Como Hollywood Vilificou um Povo.  Baixei o arquivo no torrent com facilidade e com uma qualidade de imagem bem superior.  Talvez, existam legendas por aí.  Mas vamos lá, acho que vale a pena resenhá-lo, trata-se de um material que pode ser usado – desde que por pessoas com senso crítico e informação para guiar a discussão – com grupos de alunos e alunas e mesmo com adultos.

 documentário foi lançado em 2007, foi dirigido por Sut Jhally e produzido pela Media Education Foundation.  O filme é uma extensão do livro de mesmo nome de Jack Shaheen, que co-roteiriza o filme e é seu narrador.  A idéia do documentário não é discutir, a palavra mais adequada é demonstrar que os árabes são o grupo pior representado no cinema americano.  Segundo o documentário, em se tratando dos árabes, Hollywood seria obcecada pelos três Bs: "belly dancers, billionaire sheiks and bombers" (dançarinas do ventre, bilionários e homens bomba). Os sheiks são perdulários e/ou sequestradores de donzelas e mulheres ocidentais, megalomaníacos; boa parte dos árabes em tela são terroristas cruéis e sem maior caracterização que permita a compreensão de suas motivações; enfim, os árabes em Hollywood são, ora, ridículos, ora, seres que transbordam violência; quanto às mulheres, ou são sombras sem rosto, ou dançarinas do ventre, ou, mais recentemente (*ou nem tanto*), terroristas igualmente cruéis.  

Típica representação artística orientalista.


O filme também defende que o cinema Hollywoodiano ajudou a construir no imaginário coletivo a “Arabland”, um lugar que bebe nas narrativas orientalistas dos viajantes europeus entre os séculos XVIII-XX que sempre começa a e mostrar com o deserto e vai introduzindo outros signos que se tornaram familiares a todos nós pela repetição: camelos, oásis, harém, sheiks, às vezes, tapetes mágicos etc. Características de vários espaços islamizados (*e o filme peca em não abraçar este conceito desde o início, como comentarei mais tarde*) são oferecidas em um mesmo pacote para as audiências ocidentais.  Não importa muito se é Norte da África, Oriente Médio, Turquia ou Paquistão, trata-se da Arabland.  

Esta parte do filme me fez lembrar da minha primeira aula de Império Árabe-Muçulmano em Idade Média I, segundo semestre de 1993, quando a professora, Andréia Frazão, minha primeira orientadora, perguntou quais imagens nos vinham à mente quando pensávamos em árabes.  Eu levantei a mão e falei camelos e deserto; ela disse, “Eu, não, penso em Omar Sharif.”.  Passei a pensar nele, também... Omar Sharif, um ator árabe, que se foi este ano era escalado para interpretar de tudo, do árabe ao russo, passando pelo mongol.  Aliás, vários atores latinos passaram pela mesma experiência interpretando árabes, índios, gregos e, claro, latinos.

Omar Sharif (de preto) em Lawrence da Arábia.
No geral, Reel Bad Arabs é um filme pertinente – e cabe o elogio antes das críticas inevitáveis – ao caracterizar o quanto o cinema norte americano é importante na construção do imaginário sobre qualquer coisa e, também, o quão contaminado de interesses de ordem política ele pode ser.  O ponto principal levantado no documentário é de desumanizar os árabes que são apresentados, via de regra, como pessoas violentas oriundas de uma terra e cultura dominada pela barbárie.  Daí, quando os noticiários falam da questão Palestina, no nosso imaginário social, aquelas pessoas são sombras, menos que humanas.  Os humanos são os israelenses, os palestinos, nem tanto, afinal, todos eles são terroristas em potencial.

É mais fácil – e isso vale para representações de latinos e africanos – aceitar a violência contra eles, afinal, são gente ruim, sub-humanos, desprovidos dos nobres sentimentos que habitam em gente civilizada como nós... Ooops!  O problema é que o “nós” acaba sendo muito restritivo, contudo, por recebermos o cinema Hollywoodiano maciçamente, acabamos achando que pertencemos ao grupo dos “heróis” de seus filmes.  Daí, é engraçado lembrar do jogo IrãXEUA na copa da França (1998) e Galvão Bueno escorregando no “nós” ao falar do time norte americano.  O cinema ajuda a criar identidades e estranhamentos. 

Típico árabe malvado em Aladin da Disney.
A idéia da barbárie e selvageria inerente aos árabes está, por exemplo, na abertura do desenho Aladin da Disney (1992), pois logo na primeira música o caráter bárbaro do espaço (a Arabland) e do povo é desvelado: “where they cut off your ear/ If they don’t like your face/ It’s barbaric, but hey, it’s home.” (*onde eles cortam fora a sua orelha/Se eles não gostam da sua cara/É bárbaro, mas hey, é o meu lar*).  A crítica, aliás, antecede o documentário e eu já a conhecia.  A questão, a meu ver, e Reel Bad Arabs não reflete sobre isso diretamente, é que ainda que o filme mostre que as representações sociais equivocadas dos árabes estão presentes desde os primórdios da sétima arte, eles não eram desde o início os vilões preferenciais de Hollywood.  O cinema norte americano precisava inimigos que substituíssem os soviéticos com o colapso da Cortina de Ferro.  Na época, eu percebi dois candidatos fortes, os terroristas árabes, ou mais especificamente, muçulmanos, e os alienígenas.  

Ao escrever isso, não estou pensando em filmes B ou C, a maioria das produções, grande parte da Cannon Films, citadas no documentário não eram blockbusters, mas filmes de segunda ou terceira linha, obras lançadas direto para a TV. Estou falando em True Lies (1994) e Independence Day (1996).  Tanto o terrorista, árabe-muçulmano de preferência, quanto o alienígena são menos que humanos, são criaturas planas e estereotipadas, às vezes, até sem rosto durante boa parte do filme.  Entretanto, é preciso ressaltar que o cinema norte americano não é marcado por representações positivas do estrangeiro em geral, aquele que não comunga dos usos e costumes do americano médio, que, não raro, vem trazer a dúvida, a discórdia, seduzir “nossas” mulheres, e obrigar o sujeito voltado para seu próprio umbigo a reconhecer que existem outras visões de mundo.  


True Lies.
O vilão, especialmente em filmes de ação, suspense, espionagem, terror, é normalmente o outro, não raro, alguém com sotaque.  É assim, por exemplo, em A Rede (1995), no infame A Lenda do Zorro (2005).  Já nos três primeiros filmes da série Duro de Matar temos terroristas estrangeiros, nenhum deles árabe-muçulmano.  E, aí, não há escapatória, Hollywood escolhe seus vilões ao sabor do momento histórico e, claro, influência esse mesmo contexto pela repetição das personagens.  Durante a II Grande Guerra, alemães e japoneses eram vilões principais, substituídos posteriormente por soviéticos e chineses durante a Guerra Fria.  Os árabes e muçulmanos são a bola da vez, mas nunca sozinhos.

Enfim, vendo a lista de filmes produzidos pela Cannon, todos de baixo e médio orçamento, percebi que assisti uma grande quantidade deles, filmes como Braddock, Comando Delta, a série Desejo de Matar com Charles Bronson, Falcão - O Campeão dos Campeões, Mestres do Universo, O Último Americano Virgem, As Minas do Rei Salomão, entre outros.  Todos eram recorrentes nas telas das TVs brasileiras, nunca assisti nenhum no cinema, aliás.  Parei para me perguntar quais filmes influenciam mais o nosso imaginário, os filmes B e C que se eternizavam nas TVs e em homevideo, ou os grandes lançamentos do cinema.  Enfim, o fato é que pouco me recordo de árabes em filmes como esses, nos anos 1980 e antes, a maioria dos terroristas não invocavam divindades pelo que me recordo, agora que o vilão era, via de regra, um não americano é algo muito vívido na minha lembrança.


Cena do avião em Comando Delta, vi mais de uma vez.
O filme – que só tem uma voz o tempo inteiro, a do autor do livro – bate muito na Cannon, produtora de origem israelense e a apresenta como peça chave de um grande complô contra os árabes, vilificando-os, ridicularizando-os e desumanizando-os em suas produções.  Em vários momentos, aliás, o documentário compara a visão sobre os árabes aos discursos nazistas contra os judeus.  Exagero?  Eu acredito que sim e não estou com isso dizendo que Hollywood faz representações justas de árabes e muçulmanos.  

O documentário traz também a informação sobre filmes B de ação patrocinados pelo Departamento de Defesa dos EUA.  Não me surpreende, mas era informação nova para mim.  Em um dos livros de Douglas Kelnner, ele fala do sucesso de Top Gun (1986) e de como do lado de fora de muitos cinemas havia bancas de alistamento militar.  O cidadão assistia ao filme, se empolgava, e corria para entrar para a Marinha ou Aeronáutica.  Acreditar em neutralidade do cinema, em não comprometimento de algumas produções é ser ingênuo ou canalha.  

Não lembrava que Chuck Norris era protagonista do filme, 
só lembrava da interação da aeromoça com os terroristas no avião.
Dos filmes que destaca, Reel Bad Arabs bate forte em True Lies, que confesso ser uma das minhas comédias de ação favoritas na linha "é ruim, mas eu gosto", e em um filme que não assisti, mas deve ser realmente terrível, chamado Rules of Engagement (2000).  Este, pelo que vi no documentário e li em alguns sites, é uma peça de justificação de um massacre perpetrado contra civis por marines comandados por Samuel L. Jackson no Iêmen.  Não se trata agora da Arabland, mas de um país real, ademais, reforça a idéia de que todo árabe é terrorista ou assassino, incluindo mulheres, crianças e velhos.  E isso antes do 11 de setembro.  Para muita gente, é a idéia que fica.

E, agora, entro nas minhas críticas e são muitas, pode acreditar.  Nem vou dizer que tenho mixed feelings em relação ao documentário, ele me deixou, na verdade, bem aborrecida em alguns momentos. A análise é parcial, vitimizadora dos árabes, como se Hollywood não se esmerasse em produzir estereótipos de todo mundo.  Na mesma linha de documentário, e muito superior, posso citar The Celluloid Closet (1995), que é sobre os homossexuais no cinema norte americano.  Neste documentário, que eu nunca resenhei aqui, destacam-se todos os estereótipos sobre homossexuais no cinema, fala-se desde uma época, antes do duro código criado nos anos 1930, em que os gays eram personagens recorrentes e mesmo positivas até a recente, ou nem tanto, já que se vão uns 20 anos, onda de colocar os LGBTs como vilões.  

Típico sheik perdulário e tarado.
Algo que sempre questiono é o motivo de escolherem membros de minorias – que só o são, porque sub-representadasm nas telas – para encarnar papéis vilanescos.  Nem bem nos acostumamos a vê-las como personagens normais e comuns, já que trazem vários estigmas e, quando recebem destaque, são marginais, psicopatas ou coisas do gênero.  Vale para gays, vale para árabes, vale para outros grupos subrepresentados.  Não há porque celebrar a vilanização como revolucionária ou, como gostam alguns autores de novelas brasileiros, uma afronta ao politicamente correto.

Voltando a Reel Bad Arabs, analisar é uma coisa, dizer quase que "é só com a gente" é uma outra muito diferente. Só que o filme investe pesado nessa linha de raciocínio e, mais ainda, omite pelo menos dois estereótipos de árabes que são fundadores do cinema: o sheik sedutor e o árabe honrado capaz de tudo por seu amigo (*normalmente, o mocinho ocidental*).  Enfim, falemos do sheik. Talvez por ser narrado por um homem e estar falando de homens quase o tempo inteiro, com as mulheres meio como nota de rodapé no filme, ele esqueça de falar de uma poderosa representação ligada, principalmente, à cultura pop para mulheres.  

O sheik, Rodolfo Valentino, coloca a mocinha inglesa no "seu lugar".
Ora, qual o papel máximo de Rodolfo Valentino (1895-1926), um dos primeiros, talvez o primeiro mesmo, galã do cinema americano?  O protagonista de O Sheik, que tem imagens usadas no documentário, mas não é discutido.  A personagem que sequestra a mocinha (britânica) aristocrática, a maltrata e acaba se apaixonando por ela e vice-versa, entrou para o imaginário e foi reprisada e reprisada nas telas, nos livros e, como não poderia deixar de dizer, nos mangás femininos.  O sheik “para mulheres” não é o velho asqueroso dos filmes mostrados no documentário, tampouco, o sujeito cheio de luxúria que quer violentar ou violenta a mocinha que, mais tarde, será resgatada pelo herói ocidental.  Ele é o herói da história.

 O sheik brotado da literatura para mulheres, e escrita muitas vezes por mulheres, é o sujeito viril, honrado, sedutor e que, sim, às vezes, parece (*e é*) violento com a mocinha.  Ele a arrasta para a Arabland e ela acaba, no final, desejando ficar por lá, muitas vezes largando para trás o noivo ocidental.  O filme opta por não falar deste estereótipo que também poderia ser visto como negativo (*não somente pelas feministas*). O Sheik é de 1921, portanto, dos primórdios do cinema que o filme faz questão de ressaltar como formadores do imaginário sobre a Arabland e os árabes, e baseado em um romance escrito por uma mulher. Por que omitir?  E olha que há até filmes mais sérios protagonizados por sheiks positivos, vide O Vento e o Leão (1975) com Sean Connery, que não é citado no filme.

Detalhe do cartaz do Sheik.
Aliás, o verbete da Wikipedia sobre o documentário lista os filmes citados no documentário.  Alguns deles, como o Enigma da Pirâmide (1985), um filme que eu amo, não consegui ver em tela.  Só que um dos filmes da Múmia com Brendan Fraser foi utilizado para mostrar o árabe estereotipado e não aparece listado na Wikipedia.  Acredito que faltem outros filmes e outros apareçam listados sem estarem no documentário, caso de Robin Hood – O Príncipe dos Ladrões (1991) que deveria aparecer como um dos que fazem representações positivas, já que a personagem de Morgan é o árabe honrado e, ainda por cima, culto.  Olhei de novo e não vi citado por nome.  Se passou alguma cena foi algo rápido e sem comentários por parte do narrador.

Voltando às críticas, a pior, na minha opinião, é que lá pelas tantas percebo que os realizadores cometeram um deslize a meu ver imperdoável, pois ao dizer árabe queriam, na verdade falar muçulmano. Sabe por qual motivo eu sei disso? A Revolução Islâmica não foi feita por árabes, iranianos não são árabes e a revolução em si não azedou as relações entre os norte americanos e os países árabes, o problema era com os iranianos. Pouco depois, aliás, os Estados Unidos vão ajudar Bin Laden, um sunita, no Afeganistão contra os soviéticos, a despeito da Revolução Iraniana. E, claro, afegãos não são árabes, mas sauditas, como Bin, são.  

Até as crianças são terroristas em Rules of Engagement.
Seria mais correto, para não dizer honesto, afirmar que a Revolução Iraniana influenciou a forma como os muçulmanos, os xiitas em especial, os “maus muçulmanos”, serão mostrados no cinema americano a partir de então.  E a coisa foi agravada quando os xiitas no Líbano colocaram os americanos para correr depois de um mega atentado .  Vejam que, no Brasil, xiita virou sinônimo de radical.  Enquanto isso, filmes como Rambo 3 (1988) vendiam os talebãs como guerreiros da liberdade, gente boa que lutava contra os vilões comunistas, e eram apoiados por um dos ícones do cinema de ação e propaganda de Hollywood.  Sempre digo aos meus alunos e alunas que se trata de um documento histórico.  Curiosamente, o filme silencia sobre esse filme.

Eu já desconfiava desde o início que Reel Bad Arabs estava falando de árabes quando queria ou deveria falar muçulmanos, ou, se fosse um filme melhor organizado, deveria separar os dois logo de saída, ou dizer que, pelo menos a partir de um determinado momento, que eu situo na virada para a década de 1990, o cinema americano passou a misturar as duas coisas.  Daí, quando eles cismam de separar árabe de muçulmano, pois querem introduzir o conceito de islamofobia, a coisa não fica muito clara em nenhum momento.  Além disso, para se contrapor aos estereótipos negativos, o narrador parece falar de um árabe genérico, uma “raça” uniforme, que está no reino das idéias para ser alcançado por todos nós.  Esse árabe universal obviamente não existe, fora os constrangimentos de considerar iranianos árabes e tentar forçar a idéia de que não existe grupo humano (*o filme usa “race” o tempo inteiro*) mais vilificado por Hollywood do que os árabes.  

                           Terrorista líbio de de De Volta para o Futuro.                             
Um dos exemplos generalizadores dados pelo documentário é De Volta para o Futuro (1985).  Dr. Brown é morto, segundo Reel Bad Arabs, por terroristas árabes genéricos e desnecessários.  Eu que não via o filme fazia muito tempo, fui checar para ver se minha memória não em enganava. Eu lembrava claramente de menção à terroristas líbios e não estava errada.  Em 1985, a Líbia patrocinava abertamente o terrorismo, estava em pé de guerra com os EUA, que bombardearam o país em 1986,  e toda tensão da época culminou com a derrubada do vôo da Pan Am em Lockerbie, Escócia em 1988.  Havia um contexto que individualizava os agressores, que eram tudo, menos árabes genéricos.  

Recordo-me ainda  de vários filmes com terroristas árabes em que não havia menção ao conteúdo religioso, até porque, nos anos 1960, 1970, 1980, era comum a existência de grupos guerrilheiros em Israel, no Líbano e em outros lugares sem um viés religioso explícito e unidos por bandeiras de esquerda e conceitos como o pan-arabismo.  Não raro nesses grupos – o filme mostra vários exemplos se discutir essa questão – as mulheres, sempre sem véu, eram ativas integrantes das células de ação.

 O príncipe progressista de Syriana.
Aliás, falando das mulheres, o documentário insiste que há três estereótipos para as mulheres árabes em filmes americanos: a dançarina sedutora; a submissa, velada ou não; e a terrorista sem coração.  Enfim, ele faz questão de ressaltar que as mulheres árabes são ativas, profissionais respeitadas, que são a maioria das alunas das universidades em vários países muçulmanos (*não árabes, veja bem*) blá-blá-blá, sem em nenhum momento falar de Talebã, das limitações existentes em países como a Arábia Saudita ou o Irã, ou dos casamentos infantis no Iêmen... E, mais adiante, cai na esparrela de citar Syriana (2005) como um modelo de filme hollywoodiano que retrata de forma mais equilibrada os árabes.  E qual a cena mostrada? Uma em que o príncipe progressista dala de seu desejo de modernizar seu país, uma das propostas é dar o voto às mulheres... Ora, da mesma maneira que o cinema generaliza, o crítico também o faz por seu turno.  A omissão em aprofundar a discussão sobre as mulheres não é inocente, não quando se é tão político em sua análise.

De resto, na parte das visões positivas, o documentário cita filmes não hollywoodianos, ou seja, contrariam a amostragem proposta.  Paradise Now (2005), que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro, é uma co-produção de vários países como Palestina, Israel e França, não é americano, portanto; já Hideous Kinky (1998) é da BBC e não tem relação com Hollywood.  Se fosse assim, valeria citar exemplos cinematográficos de todo mundo, coisa que já é inviabilizada pelo título do filme.  

Saladino em Cruzada.
Nessa parte das representações positivas, o único filme hollywoodiano que recebe destaque e elogios é Cruzada (2005).  Falar de Saladino – um sujeito elogiado por aliados e inimigos – é meio que chover no molhado e o documentário se agarra a ele para falar da tolerância vivida no mundo árabe (*sim, essa coisa genérica*) entre cristão e muçulmanos, que o filme foi aplaudido em Beirute, que fez mais sucesso fora dos EUA do que dentro dele.  É o único momento em que o documentário fala que nem todos os árabes são muçulmanos, mas como o objetivo é passar uma imagem sempre positiva dos árabes, as tensões, já evidentes em 2006, ano de produção do filme, especialmente no Iraque ficam de fora.

Eu particularmente não gosto de Cruzada, ainda que goste de Saladino.  Só que cabe ressaltar que o filme em questão tem como objetivo mostrar o quão complicada era a situação dos cristãos no Reino de Jerusalém e o quanto esses mesmos cristãos, em especial os Templários, vilanizados na película, não estavam se comportando lá muito bem.  Ao mostrar os muçulmanos, Cruzada não foge dos estereótipos em relação aos árabes.  Temos Saladino, a figura máxima, imbuída de todas as virtudes possíveis.  Ele está além de qualquer análise, só que há duas outras personagens árabes proeminentes.  Uma delas é o árabe honrado, aquele estereótipo que não é analisado no filme.  Alexander Siddig, que vive sendo escalado para papéis “exóticos”, afinal, até bizantino já foi, encarna o papel de Nasir.  Ele também é o príncipe progressista de Syriana.  

Morgan Freeman em Robin Hood.   
A personagem guia o herói, age à serviço de Saladino, é um tipo recorrente no cinema hollywoodiano, também.  Omar Sharif, uma ausência no documentário, faz um tipo semelhante em Lawrence da Arábia (1962).  É o árabe do bem.  Talvez, o filme tenha chegado perto dessa representação ao expor que em filmes de ação – aqueles com comandos e coisas do gênero – há o árabe bom, que mata os árabes maus e age junto com o herói, mas nunca é o protagonista do filme.  Só que reduzir o árabe honrado a isso é um exagero, prefiro acreditar que o filme omitiu esse estereótipo por ele ser positivo, ainda que esquemático.  De qualquer forma, o árabe honrado é uma personagem que existe em função do herói, está a serviço do colonizador, por assim dizer.

O outro árabe em evidência que aparece em Cruzado é o sujeito com discurso de ódio, que quer matar os cristãos, que se veste de preto (*e era bem gatinho*).  Meu marido e eu brincamos que era o cara do Hizbollah, o moço da jihad.  Ele, claro, não se cria com Saladino, mas está lá para lembrar a audiência de que existem os bons e os maus árabes.  Cruzada se prestaria muito à análise do documentário, mas aparece só para tentar passar a idéia de que Saladino era menos uma exceção e mais uma regra do que os árabes eram e são.  


Arábe "Cachorro Louco do Deserto" em um desenho do Gaguinho.
Enfim, Reel Bad Arabs vale ser assistido, mas é parcial o suficiente para servir de armadilha para quem não tenha conhecimentos suficientes sobre o contexto histórico e mesmo memória sobre cinema.  Gostei e não gostei, o deslize dos iranianos chamados de árabes me fez questionar se seguia até o final.  Cheguei ao fim, mas com a certeza de que a questão dos árabes no cinema norte americano merecia um documentário melhor, um tão bom quanto The Celluloid Closet.  Para quem quiser, o documentário legendado em português está aí embaixo.






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