sábado, junho 14, 2008

2º BIMESTRE: Inácio de Loyola e a Companhia de Jesus

Inácio de Loyola (1491-1556), o fundador da Companhia de Jesus, espanhol de nascimento, fora pajem, tesoureiro-mor do rei Fernando, o Católico (1506-1517), depois gentil-homem na corte do vice-rei de Navarra. Ferido na batalha de Pamplona, em maio de 1521, é socorrido pelos franceses, seus vencedores, e reconduzido ao castelo de Loyola. Aí ocorre sua primeira experiência espiritual, com visões, conflitos íntimos muito fortes e chamados de Deus, os quais aparecem em seus sonhos.

Estando uma noite desperto, viu claramente uma imagem de Nossa Senhora com o santo Menino Jesus, com cuja visão, por espaço notável, recebeu consolação muito extraordinária, e ficou com tanto asco da vida passada, e especialmente de coisas da carne, que lhe parecia terem-lhe saído do ânimo todas as espécies que antes nele tinha pintadas. (Inácio de Loyola,'Relato do peregrino'. Apud Karl Rahner, op. cit., p. 53.)

Convertido, põe-se a andar como peregrino e mendigo. Começa a fazer pregações e, em Salamanca, acaba sendo chamado pela Inquisição, e ojuiz o proíbe de tratar de assuntos teológicos antes de ter concluído os estudos. Vai para Paris (1528) e lá permanece estudando e buscando agregar a si companheiros dispostos a adotar seu modo de vida: pobreza evangélica, trabalho de catequese com os pobres, ideal de missão, disciplina rígida.

Em abril de 1538, Inácio e mais nove companheiros são recebidos pelo papa Paulo III, que os submete a um exame público de doutrina, em que eles são aprovados. O papa lhes concede a faculdade de pregar e confessar no mundo inteiro e sem recorrer aos bispos locais. Em novembro do mesmo ano, o grupo resolve pôr-se à disposição da vontade do papa, vigário de Cristo:
[...] nos oferecemos ao Pontífice Supremo, enquanto senhor da messe* universal de Cristo, e, neste oferecimento, significamos-lhe que estávamos prontos a tudo o que resolvesse fazer de nós em Cristo.[...] Por que motivos nos ligamos com tal compromisso à vontade do Pontífice? É por sabermos que ele conhece melhor do que ninguém o que convém ao cristianismo universal. (Fabro, carta a Diogo de Gouvea, 23 de novembro de 1538. Apud André Ravier S. J., Santo Inácio funda a Companhia de Jesus, p. 24.)

A Companhia de Jesus

Inácio e seus companheiros se envolvem em inúmeras atividades em Roma, especialmente com a instrução e com a catequese, e logo começam a ser solicitados a outras missões: Carlos V os quer para as índias espanholas; D.João III deseja enviá-los às índias portuguesas; os bispos e príncipes do norte da Itália os solicitam a seus domínios; o arcebispo de Sena os quer para a reforma de um mosteiro; o cardeal de Parma e Placência necessita deles para efetuar uma reforma nos costumes destas cidades...

O grupo apresenta sinais de separação definitiva, o que preocupa os companheiros. Eles deliberam longamente e apresentam em setembro de 1539 um documento ao papa Paulo III, intitulado Prima Societatis Jesu Instituti Summa, propondo a criação de uma ordem, a Companhia de Jesus. Um ano depois, em 27 de setembro de 1540, o papa Paulo III assina a bula Regimini militantis ecclesiae e funda oficialmente a Companhia de Jesus. Duas são as possibilidades de explicação para a designação "Companhia de Jesus":

Ao verem que não havia entre eles chefe nem superior, exceto Jesus Cristo, a quem queriam servir com exclusão de qualquer outro, pareceu-lhes bom tomar o nome daquele que tinham como chefe e chamar-se Companhia de Jesus. (Polanco, Summarium Hispanicum, 1547. Apud André Ravier S. J., op. cit., p. 21.)

O espírito militar de Inácio de Loyola e a ideia de uma ordem militante e missionária, que necessitava de uma organização semelhante a um exército, também explicam a escolha dessa designação:

Saibam todos os companheiros e se recordem, não só nos primeiros tempos de sua profissão, mas todos os dias de sua vida, que esta Companhia inteira e cada um de seus membros combatem por Deus sob a fiel obediência a nosso Santíssimo Padre Paulo III e a seus sucessores.[...] (Prima Societatis Jesu Instituti Summa, 1539. Apud André Ravier S. J., op. cit., p. 101.)

Uma intensa atividade missioneira e militante e uma formação intelectual muito sólida foram duas das características dos padres da Companhia de Jesus, seguindo, inúmeras vezes, orientação expressa por Inácio de Loyola e registrada nos documentos de fundação da Companhia:

Todo aquele que pretender alistar-se sob a bandeira da cruz, na nossa Companhia, que desejamos se assinale com o nome de Jesus, para combater por Deus e servir somente ao Senhor e ao Romano Pontífice, seu Vigário na terra, depois do voto solene de perpétua castidade persuada-se que é membro da Companhia. Esta foi instituída principalmente para o aperfeiçoamento das almas na vida e na doutrina cristãs, epara a propagação da fé, por meio de pregações públicas, do ministério da palavra de Deus, dos Exercícios Espirituais e obras de caridade e, nomeadamente pela formação cristã das crianças e dos rudes, bem como por meio de Confissões,buscando principalmente a consolação espiritual dos fiéis cristãos. [...] (Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, aprovada por Paulo III, 1539. Apud Karl Rahner, op. cit., p. 78.)

2º BIMESTRE: A Contra-Reforma e o Concílio de Trento

No final do ano de 1535, o papa Paulo III constituiu um grupo de conselheiros para estudar a grave questão da reforma doutrinal e espiritual da Igreja Católica. Esse grupo produziu um documento editado pela primeira vez em 1538, no qual se fazia uma avaliação muito severa da situação da Igreja. O documento atacava em primeiro lugar o emprego abusivo dos bens da Igreja pelo papa, que podia vender "benefícios", dispondo livremente do que era considerado seu. Na sequência, constatava-se a ignorância e a imoralidade do clero, especialmente em Roma.
O Concilio de Trento
Após muitas hesitações e desentendimentos entre o papa, bispos, reis e imperadores sobre o local de realização e quem participaria, abriu-se a 13 de dezembro de 1545 o Décimo Nono Concílio Ecumênico da Igreja Cristã, na cidade de Trento. Paulo III, com 80 anos, ficou em Roma e presidia o concílio a distância.

O Concílio de Trento teve uma existência longa e tumultuada: foi interrompido diversas vezes devido a guerras, desen tendimentos, uma peste que grassou na região e reduzido número de participantes. Iniciou sob o pontificado de Paulo III, continuou sob Júlio III (quando os protestantes também puderam participar), não se reuniu nenhuma vez durante o pontificado de Paulo IV, voltou a reunir-se e terminou a 4 de dezembro de 1563 com o papa Pio IV. Tomou deliberações que mexeram na estrutura do clero e governaram a Igreja durante séculos.
O Sagrado Concílio de Trento, juridicamente reunido pelo Espírito Santo [...], exorta os bispos e todas as pessoas da Igreja aqui reunidas a celebrar o concílio universal, que pretende louvar sempre a Deus, oferecer-lhe sacrifícios, glórias e preces, e a realizar o sacrifício da missa pelo menos aos domingos: naquele dia Deus criou o mundo, ressuscitou os mortos e manifestou o Espírito Santo em seus discípulos [...]

Nós os exortamos ainda a jejuar pelo menos cada sexta-feira, em memória da paixão de Nosso Senhor, e a dar esmolas aos pobres; e que na catedral todos os domingos celebre-se a missa do Espírito Santo com ladainhas e outras orações compostas para esse uso [...]

E que enquanto o serviço da missa se faça, não se converse, não se fale nada: mas que se a assista com espírito de oração.

Os bispos devem ser irrepreensíveis, sábios, castos e bons dirigentes de seus bispados; o concílio pede que cada um seja sóbrio em sua mesa e coma pouca carne. É também preciso que se acostumem a não falar de assuntos ociosos durante as refeições: o concílio ordena leituras santas e que cada um instrua seus empregados a não semearem a discórdia, não beberem e não serem imorais, cobiçosos, arrogantes ou blasfe-madores. Que logo abandonem os vícios e sigam as virtudes; que nas roupas e no vestuário e em todos os atos eles sejam honestos, como convém a um ministro de Deus.

Na concessão de indulgências o concílio decreta que todo lucro criminoso daí proveniente será inteiramente abolido, como fonte de abuso grave entre o povo cristão; e quanto a outras desordens originadas da superstição, da ignorância,da irreverência ou de qualquer causa que seja, o concílio impõe a cada bispo o dever de denunciar tais abusos desde que existam em sua própria diocese.
(Resoluções do Concílio de Trento, 1563. Apud José Jobson de Andrade Arruda, História moderna e contemporânea, p. 45.)
O Concílio de Trento reforçou o poder do papa, criou o Index, relação de livros proibidos à leitura dos cristãos, eliminou a comunhão de ambos os tipos (pão e vinho), mantendo apenas a comunhão do pão. Obrigou também os bispos a residirem em suas sedes, conservou os sete sacramentos, reforçou o Tribunal do Santo Ofício (Inquisição), afirmou que somente a Igreja podia interpretar a Escritura e fixou regras para a formação e a vida dos padres (seminários) e dos regulares (clausura). Ao contrário dos protestantes, que defendiam uma cerimônia simplificada, salientou a importância da missa como sacrifício que renova o de Cristo, devendo ela ser realizada segundo ritual estabelecido pela Igreja:
Como a natureza humana não pode elevar-se facilmente às coisas divinas sem uma ajuda exterior dos sentidos, a Igreja, em sua bondade, instituiu diversos ritos: certas palavras da missa serão pronunciadas em voz baixa, outras em voz alta. A Igreja prevê cerimônias apropriadas, bênçãos, luzes, incenso, vestimentas e muitas outras coisas que procedem da disciplina e da tradição apostólicas. Por esses sinais visíveis da religião e da piedade, enquanto se recordam da majestade de tão grande sacrifício, os espíritos dos fiéis se elevam à contemplação das realidades celestiais ocultas neste sacrifício. (Resoluções do Concílio de Trento, 1563. Apud Miguel Artola, op. cit., p. 296-7.)
No debate sobre a salvação do homem, as posições se dividiam: enquanto uns afirmavam o livre-arbítrio, ou seja, que as boas obras feitas pelo homem o conduzem à salvação, outros defendiam que a salvação era obra unicamente da graça do Senhor, concedida segundo sua estrita vontade. Os teólogos rejeitavam Erasmo porque concedia demasiado ao homem, e Lutero porque lhe recusava tudo:
I — Se alguém disser que o homem se pode justificar para com Deus por suas próprias obras, [...] ou pela doutrina da lei, sem a divina graça adquirida por Jesus Cristo, seja excomungado.

IV — Se alguém disser que o livre-arbítrio do homem, movido e excitado por Deus, nada coopera [...] para alcançar a graça da justificação, dizendo que o homem é como um ser inanimado ou sujeito passivo, seja excomungado.

V — Se alguém disser que o livre-arbítrio do homem está perdido e extinto depois do pecado de Adão, ou que ele é um simples nome sem objeto, ou que ele é uma ficção introduzida pelo Demônio na Igreja, seja excomungado.
(Resoluções do Concílio de Trento, 1563. Apud Miguel Artola, op. cit., p. 296-7.)
O documento final terminou proclamando o livre-arbítrio, mas estabeleceu duas fases sucessivas na operação da graça:
Se a vontade humana, tocada pela misericórdia preveni-ente, faz um esforço para executar a vontade de Deus, então Deus lhe concede a verdadeira Graça, e, se o homem responde favoravelmente por suas boas obras, então ele a merece para a vida eterna. A Graça é necessária, mas não prejudica o livre-arbítrio, não é constrangedora. (Resoluções do Concílio de Trento, 1563. Apud Miguel Artola, op. cit.,p. 294-6.)

Trabalha como se tudo dependesse de ti; reza como se tudo dependesse de Deus. (Ditado popular da época. Apud Karl Rahner, Inácio de Loyola, p. 77.)
Ao longo de todo o concílio teve grande influência nas discussões teológicas um grupo de padres de sólida formação cultural, grande disciplina e intensa atividade militante, pertencente à recém-formada Companhia de Jesus — os jesuítas —, braço direito do papa.

2º BIMESTRE: Henrique VIII e a Igreja Anglicana

Em 1521, o rei inglês Henrique VIII publicou um livro em que atacava as idéias de Lutero, recebendo do papa, por isso, o título de Defensor Fidei. Mas as relações da Coroa com a Igreja se complicaram a partir de 1527, quando Henrique VIII começou a dar os primeiros passos no sentido de conseguir a anulação de seu casamento com Catarina de Aragão. Catarina era princesa espanhola, filha de Fernão e Isabel, os reis católicos. Tinha vindo à Inglaterra em 1501, e havia se casado com o irmão mais velho de Henrique, que deveria ser o futuro rei. Artur e Catarina tinham 16 anos de idade. Artur morreu poucos meses depois, e seu pai, o rei Henrique VII, temendo que Catarina voltasse à Espanha levando de volta os 200 000 ducados que tinha trazido como dote, casou-a com o filho mais novo, Henrique, que seria depois o rei Henrique VIII. Henrique tinha 12 anos, e Catarina 18.

Inúmeras vezes a rainha engravidou, mas deu à luz natimortos ou crianças que morreram nas primeiras semanas de vida. A única exceção foi a filha Maria, nascida em 1516, que se tornaria a futura rainha Maria Tudor. Desejando um herdei¬ro masculino para o trono, Henrique VIII pediu ao papa a anulação de seu casamento com Catarina. O poder papal concedia tais separações e já havia precedentes. Mas o papa Clemente VII, fortemente pressionado pelo imperador Carlos V (Espanha e Sacro Império), iniciou uma série de manobras adiando ao máximo a decisão.

Ao mesmo tempo, as críticas à Igreja cresciam cada vez mais: chamavam-se os padres de "classe vadia", e os comerciantes pediam ao rei que diminuísse o poder e as rendas da Igreja.

Em novembro de 1529, reuniu-se uma nova seção do Parlamento inglês. Os grupos mais influentes (nobres na Câmara Alta e mercadores na Câmara dos Comuns) concorda-vam com dois pontos: redução da riqueza e do poder eclesiásticos e apoio ao rei em sua campanha em prol de um herdeiro masculino ao trono. Foram aprovadas algumas leis que impediam que o clero tivesse direito de cobrar taxas obituárias e taxas sobre a homologação de testamentos. Em 1531, Henrique VIII exigiu ser reconhecido pela Igreja como Protetor e único chefe supremo da Igreja e do clero da Inglaterra. Com isso, cessaria o voto de obediência da Igreja inglesa ao papa. Após muitas discussões, a Igreja concedeu ao rei o título de Protetor e único chefe supremo da Igreja e do clero da Inglaterra, enquanto permitir a lei de Cristo. Em 1532, reuniu-se um sínodo dos bispos ingleses, e ficou claro que a maioria deles estava ao lado do rei e contra o papa:
Possa ser do agrado de Vossa Graça mandar cessar essas injustas exigências que nos faz a Igreja de Roma. [...] E, no caso que o Papa queira instaurar um processo contra este reino para obter as anatas, possa agradar a Vossa Majestade ordenar no presente parlamento que se retire da Igreja de Roma a obediência de Vossa Majestade e do Povo. (Carta do sínodo dos bispos ingleses ao rei Henrique VIII, 1532. Apud Will Durant, op. cit., p. 460.)
Com essa garantia dada pelos bispos e cardeais ingleses, em 15 de janeiro de 1533 Henrique VIII casou-se com Ana Bolena, que já estava grávida de quatro meses. A cúpula da Igreja da Inglaterra reconheceu o divórcio do rei com Catarina de Aragão, sendo coroada rainha da Inglaterra Ana Bolena, em maio de 1533. Emjulho do mesmo ano, o papa Clemente VII declarou nulo o novo casamento, ilegítima a sua descendência e excomungou o rei. Em novembro de 1534, o Parlamento votou os Estatutos de Supremacia, nos quais se reafirmava a soberania do rei sobre a Igreja e o Estado na Inglaterra. Batizava-se a nova Igreja nacional com o nome de Ecclesia Anglicana (Igreja Anglicana) e davam-se ao rei todos os poderes sobre moral, organizações, credo e reforma eclesiástica, pode¬res que anteriormente cabiam à Igreja:
O Rei é o chefe supremo da Igreja da Inglaterra [...]. Nesta qualidade, o Rei tem todo poder de examinar, reprimir, corrigir tais erros, heresias, abusos, ofensas e irregularidades que sejam ou possam ser reformados legalmente por autoridade espiritual, a fim de conservar a paz, a unidade e a tranquilidade do Reino, não obstante todos os usos, costumes e leis estrangeiras, toda autoridade estrangeira [...]. (Ato de Supremacia, 1534. Apud Rubim S. L. Aquino, História das sociedades modernas às sociedades atuais, p.85.)
As Perseguições eligiosas
Em julho de 1535, as perseguições movidas por Henrique VIII contra os religiosos que não aceitavam a nova situação atingiram Thomas More, antigo conselheiro do rei e autor do livro Utopia, que perdeu a cabeça no cadafalso.

Da mesma forma que na Alemanha, na Inglaterra a Refor¬ma havia nascido nas cidades e encontrou resistências para se implantar nos campos, especialmente a partir do momento em que a Coroa começou a extinguir os mosteiros e entregá-los nas mãos de nobres e burgueses. Os monges dos mosteiros aliaram-se aos camponeses e, entre 1535 e 1538, inúmeras regiões da Inglaterra e da Escócia foram agitadas por rebeliões camponesas, duramente reprimidas pelo rei:
Nossa vontade é que, antes de recolherdes nossas bandeiras novamente, façais uma execução tão terrível de um bom número de habitantes de cada cidade, vila e aldeia que participaram dessa ofensa, que elas possam ser um espetáculo horroroso para todos os demais que, daqui em diante, quise-rem agir de modo semelhante [...] Como todas essas revoltas surgiram por solicitação e traiçoeiras conspirações de monges e cónegos daquelas regiões, desejamos que vós, nesses lugares que conspiraram e opuseram resistência, mandeis, sem piedade e formalidades, deter sem mais demora ou cerimônia todos os monges e cónegos que, de qualquer modo, forem culpados. (Ordens de Henrique VIII aos comandantes militares, 1537. Apud Will Durant, op. cit., p. 447.)
Por volta de 1540, todos os mosteiros e propriedades rurais da Igreja haviam passado para as mãos do rei, que os deu de presente a inúmeras famflias da aristocracia e da burguesia. Assim sendo, esses grupos se tornaram defensores ferrenhos da nova religião e inimigos da volta do catolicismo e da obediência ao papa.

A Igreja Anglicana conservou a estrutura e os dogmas da Igreja Católica, com pequenas alterações. Não foi feita uma reforma profunda nos costumes do clero, que passou a ser visto pela população como um aliado da Coroa, o que facilitou o surgimento e a disseminação de uma série de religiões puritanas e protestantes, normalmente perseguidas pelos reis ingleses seguintes.

2º BIMESTRE: Lutero e as rebeliões camponesas

As revoltas camponesas não eram raras na Europa. Oprimidos por altos impostos e obrigações feudais, as tensões eram permanentes. A partir de 1521, quando a excomunhão de Lutero condenou os protestantes à ruptura com Roma, as agitações cresceram entre os camponeses. Pregadores radicais como Thomas Munzer falavam contra o poder dos príncipes e as obrigações feudais. Em 1525, seus seguidores tomaram a cidade de Mulhausen e proclamaram o “Conselho Eterno”. Na região de Memmingen, 30 mil camponeses em armas ameaçavam a “ordem”. Eles produziram um documento, os “Doze Artigos” explicando os motivos de seu levante e o enviaram à Lutero. Lutero respondeu num panfleto que criticava tanto os senhores e príncipes como os camponeses, mas se mostrava ainda acolhedor com algumas demandas dos revoltosos:
Não temos ninguém a quem agradecer esta rebelião maligna a não ser vós, príncipes e senhores, e principalmente vós, bispos e padres e monges alucinados, cujos corações estão endurecidos contra o Santo Evangelho, embora saibais que é verdade e que não podeis desmenti-lo. Além disso, em vosso governo temporal, não fazeis outra coisa senão espoliar e roubar vossos súditos, para poderdes levar vida de esplendor e soberba, até o pobre povo comum não poder aguentar mais. Muito bem, então, uma vez que sois a causa desta ira de Deus, ela indubitavelmente cairá sobre vós, se não modificardes a tempo vossos métodos. Os camponeses estão reunidos, e isso pode resultar na ruína, destruição e desolação da Alemanha por duros assassínios e derramamentos de sangue, a menos que Deus seja levado por vosso arrependimento a impedi-lo [...] Não são os camponeses que se levantam contra vós, mas Deus mesmo.(...)

Escolhei, entre os nobres, determinados condes e senhores, e das cidades alguns conselheiros, e tratai desses assuntos e resolvei-os de maneira amistosa. Vós, senhores, abandonai vossa teimosia, e desisti de uma parte de vossa tirania e opressão, para que a pobre gente tenha ar e espaço para viver. Por sua parte, os camponeses deveriam deixar-se instruir,ceder e deixar passar alguns artigos que visam longe demais e alto demais. (Lutero, 'Exortação à paz', abril de 1525. Apud Will Durant, op. cit, p. 323.)
Thomas Munzer, uma das lideranças do movimento camponês, protestou publicamente, chamando Lutero de Dr. Mentiroso:
Então ele não vê que a usura e as taxas impedem que se tenha acesso à fé? Ele afirma que a palavra de Deus é suficiente. Então não vê que os homens que consomem todos os momentos da sua vida na luta pela sobrevivência não têm tempo para aprender a ler a palavra de Deus ? Os príncipes sangram o povo por meio da usura e contam como seus todos os peixes dos rios, os pássaros do ar e a erva dos campos, e o Dr. Mentiroso diz "Amém". Que coragem afinal é a dele, o Dr. Patinha de Gato, o novo Papa de Wittenberg, o Dr. Cadeira de Balanço, o sicofante amante dos banhos de sol? Ah, ele afirma que não deve haver revolta porque a espada foi entregue por Deus aos governantes. Mas o poder da espada pertence a toda a comunidade! (Thomas Munzer, carta pública a Lutero, 1525. Apud Henry Kamen, op. cit., p. 32.)
Lutero condena os camponeses
Os camponeses prosseguiram com a revolta, atacando castelos e cidades, distribuindo terras e alimentos. A rebelião espalhou-se tão depressa que em maio do mesmo ano já havia combates entre senhores e camponeses em inúmeras regiões da Alemanha. Lutero lançou então outro panfleto condenando severamente os camponeses o que resultou em um banho de sangue:
No primeiro livro não me aventurei a julgar os camponeses, uma vez que tinham oferecido deixar-se acomodar e instruir. Mas antes que eu me voltasse para eles, esquecendo seu oferecimento, entregaram-se à violência, e roubaram, enfureceram-se e agiram como cães enraivecidos. O que estão fazendo é obra do Diabo, e em particular é obra do arquidiabo [refere-se a Thomas Munzer] que governa em Mulhausen. Devo principiar apresentando-lhes seus pecados. Em seguida devo ensinar aos governantes como deverão conduzir-se nessas circunstâncias [...]
Qualquer homem contra o qual se possa provar sedição está fora da lei de Deus e do Império, de modo que o primeiro que puder matá-lo está agindo acertadamente e bem. Pois a rebelião traz consigo uma terra cheia de assassínios e derrama¬mento de sangue, faz viúvas e órfãos, e põe tudo de cabeça para baixo. Portanto, que todo aquele que puder, elimine, mate e apunhale, secreta ou abertamente, um rebelde. E como quando se tem de matar um cão raivoso, se não o matarmos ele nos matará, e um país inteiro conosco. [...]
O Evangelho não torna comuns os bens, exceto no caso daqueles que fazem por espontânea vontade, o que os Apósto los e discípulos fizeram nos Atos IV. Não pediram, como fazem nossos camponeses alucinados em sua fúria, que os bens dos outros — de um Pilatos ou de um Herodes — ficassem em comum, e sim seus próprios bens. Entretanto, nossos camponeses querem comunizar os bens dos outros homens, e que os seus próprios fiquem para eles. Que belos cristãos, esses! Acho que não sobrou nenhum diabo no inferno, transformaram-se todos em camponeses.[...] É uma ninharia para Deus o morticínio de um lote de camponeses, pois ele afogou a Humanidade inteira por meio do Dilúvio, e fez desaparecer Sodoma por meio do fogo. (Lutero, 'Contra as hordas salteadoras e assassinas de camponeses', maio de 1525. Apud Will Durant, op. cit., p. 326.)
Após inúmeros e sangrentos confrontos, os exércitos dos senhores e príncipes derrotaram os camponeses, assassinando milhares deles e muitos outros envolvidos, inclusive Thomas Munzer, uma das principais lideranças. Com isso, consolidou-se o poder dos príncipes e senhores, e a estrutura feudal ficou reforçada na Alemanha.

2º BIMESTRE: O Calvinismo

À medida que o luteranismo se espalhava e ganhava adeptos, também aumentavam as discordâncias e multiplicavam-se as novas visões dentro dele. Calvino nasceu na França, em 1509, e teve toda a sua formação voltada para o sacerdócio, estudando Latim, Teologia e depois Direito, sempre dentro de princípios católicos rigorosos. Mesmo assim, converteu-se ao luteranismo por volta de 1530, renunciando aos benefícios eclesiásticos que já havia conseguido. Teve que fugir da França e em 1536 fixou-se em Genebra, publicando neste mesmo ano uma obra em que expõe os princípios de sua teologia, cuja característica principal é a idéia da predesti¬nação:
Chamamos de predestinação ao eterno decreto de Deus com que Sua Majestade determinou o que deseja fazer a cada um dos homens: porque Ele não cria a todos em uma mesma condição e estado; mas ordena a uns a vida eterna e a outros a perpétua condenação. Portanto, segundo o fim a que o homem é criado, dizemos que está predestinado ou à vida ou à morte [...]Afirmamos pois (como a Escritura evidentemente o mos¬tra) que Deus constituiu em seu eterno e imutável desejo aqueles que Ele quis que fossem salvos e aqueles que desejou fossem condenados.Este desejo está fundado sobre a gratuita misericórdia divina, sem ter nenhuma relação com a dignidade do homem; ao contrário, o portão da vida eterna está fechado a todos aqueles que Ele quis entregar à condenação, e isso se faz por seu secreto e incompreensível juízo, o qual é justo e irrepreensível. (Calvino, Instituição da religião cristã, 1536. Apud Miguel Artola, op. cit., p. 277-8.)
A idéia da predestinação está amparada no dogma cristão da onisciência divina — Deus tudo sabe e tudo vê. Sendo assim, Deus sabe, desde sempre, quem vai ser destinado à salvação e quem vai ser destinado à condenação (...)
O Calvinismo se ajustou bem aos interesses da burguesia nascente, pois justificava o lucro e a riqueza advindas do esforço e que estas seriam evidências da graça divina, defendia que o trabalho era uma missão do homem dada por Deus. Também, pregava que o fiel deveria se abster dos prazeres terrenos e da ostentação, o que conduziu oa capitais obtidos pelo trabalho a serem reinvestidos e não gastos em luxo. Genebra passou a ser conhecida como a "Roma do Protestantismo" acolhendo os perseguidos e oferecendo sólida formação aos novos pregadores. Nos mais diferentes países os calvinistas podiam ser encontrados, eram os huguenotes na França, os puritanos na Inglaterra, os presbiterianos na Escócia. As doutrinas calvinistas também influenciaram o Anglicanismo e outras denominações surgidas na segunda leva da Reforma.

2º BIMESTRE: Lutero e a Reforma Protestante na Alemanha


O Sacro Império Romano-Germânico

A Alemanha nesta época era constituída por uma série de territórios e cidades que possuíam administração independente e estavam ligados entre si numa forma que lembrava uma federação, reconhecendo apenas uma lealdade limitada ao chefe do Sacro Império Romano-Germânico. Alguns desses Estados — Baviera, Saxônia, Brandem-burgo, Áustria, Palatinado... — eram governados por duques, condes, margraves* ou outros senhores seculares; outros — Mogúncia, Halle, Colónia, Bremen, Estrasburgo, Salzburgo... — eram politicamente sujeitos, em graus variáveis, à autoridade de bispos e arcebispos. Por volta de 1460, uma centena de cidades havia recebido cartas de liberdade virtual de seus superiores leigos ou eclesiásticos. Os principados e as cidades livres enviavam representantes à Dieta Imperial, que debatia os problemas de todos. A Dieta de Eleitores era convocada para escolher o rei, e nela votavam o rei da Boêmia, o duque da Saxônia, o margrave de Brandemburgo, o conde palatino e os arcebispos de Mogúncia, Trier e Colônia. Essa escolha criava apenas um rei, que era reconhecido, depois de sagrado pelo papa, como imperador do Sacro Império Romano-Ger¬mânico. No fundo, essa organização se apresentava como uma frouxa associação entre Alemanha, Áustria, Boêmia, Holanda e Suíça.

A 15 de março de 1517, o papa Leão X promulgou a mais célebre de todas as indulgências: aquela que oferecia a remissão de todos os pecados a quem contribuísse para a construção da nova basílica de São Pedro em Roma, cuja obra havia sido iniciada pelo papa anterior,Júlio II. Reis e governantes de toda a Europa protestaram contra as constantes contribuições à Igreja de Roma, que empobreciam seus territórios. Onde os reis eram poderosos, o papa negociou com prudência: concordou que Henrique VIII retivesse um quarto dos lucros na Inglaterra, acertou a mesma coisa com Francisco I da França e concedeu um empréstimo ao rei Carlos I (que mais tarde vai ser o imperador Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico) contando com as coletas que seriam levantadas na Espanha. Na Alemanha, que não tinha uma monarquia forte para negociar e era extremamente próspera, o papa entrou em acordo com os Fugger, que eram banqueiros, e tentou extrair de lá todo o dinheiro que pudesse.

Lutero

Nesta época, Lutero era professor de Teologia na Universidade de Wittenberg. Nascido em Eisleben, em 1483, Lutero foi um aluno aplicado e recebeu, aos 22 anos, o grau de Doutor em Humanidades pela Universidade de Erfurt. Por influência do pai, começou a estudar Direito, mas logo desistiu e tornou-se monge. Essa decisão era fruto da atmosfera de inquietação, temores e angústia religiosa da época, que afetou profundamente Lutero, preocupado com a salvação de sua alma e com a tentação do pecado.

Durante os anos no convento e posteriormente como professor de Teologia na Universidade de Wittenberg, Lutero foi aperfeiçoando sua visão a respeito da salvação do homem e do pecado. Lutero era um admirador dos escritos de João Huss, herege queimado pela Igreja em 1415, especialmente de suas idéias sobre a liberdade da Igreja diante dos papas, sobre a liberdade de consciência individual diante do concílio e sobre a necessidade de reconduzir o mundo cristão à simplicidade apostólica. Numa carta de 1520, Lutero chega a afirmar que "todos somos hussitas sem o saber; São Paulo e Santo Agostinho são também perfeitos hussitas". (Lutero, carta de 1520. Apud Henry Kamen, Los caminos de la tolerância, p. 58.)

Lutero termina por convencer-se da impotência total e irremediável da vontade humana diante da onipotência da graça divina. O livre-arbítrio foi corrompido pelo pecado de Adão, e, por isso, somente a fé, que é a primeira das graças que Deus envia gratuitamente àqueles que escolheu, pode salvar-nos. As obras não têm importância para a salvação, elas são um simples sinal da graça de Deus. (...)

Estava iniciada a briga com Roma. As Noventa e Cinco Teses, escritas originalmente em latim, foram traduzidas para o alemão e tiveram ampla divulgação e aceitação. O papa Leão X ordenou a Lutero que fosse a Roma se retratar. Protegido por Frederico, Eleitor da Saxônia, Lutero encontrou-se em Augsburgo com o cardeal Cajetan (12 a 14 de outubro de 1518), enviado do papa, mas não se retratou.

Para o texto das 95 Teses de Lutero, sugiro a leitura do artigo do Professor Alexander Martins Vianna, na
Revista Espaço Acadêmico que analisa o documento e tem excelente qualidade.

Rompendo com Roma

Tendo recebido apoio de diversos lados, Lutero se decide a romper com a Igreja de Roma:

Atirei os dados. Agora desprezo a ira dos romanos tanto quanto sua proteção. Não me reconciliarei com eles por toda a eternidade[...] Eles que condenem e queimem tudo o que me pertence; em retribuição, farei o mesmo com eles [...] Agora já não tenho medo, e vou publicar um livro em língua alemã sobre a reforma cristã, dirigido contra o papa, em uma linguagem tão violenta como se me estivesse dirigindo ao Anticristo. (Lutero, carta a Spalatin, 1520. Apud Will Durant, op. cit., p. 295.)
Uma vez feito o rompimento, as críticas de Lutero ao papa e a toda a Cúria Romana aumentaram de intensidade:

Se Roma assim acredita e ensina com o conhecimento dos papas e cardeais (que eu espero não seja o caso), então nestes escritos declaro livremente que o verdadeiro Anticristo está sentado no templo de Deus e reina em Roma — essa Babilônia tinta de roxo — e que a Cúria Romana é a Sinagoga de Satanás [...] Se a fúria dos romanos assim continuar, não haverá outro remédio senão os imperadores, reis e príncipes, rodeados de força e armas, atacarem estas pestes do mundo, e não mais resolver o assunto com palavras e sim com a espada. [...] Se nós abatemos os ladrões com a forca, os salteadores com a espada, os hereges com o fogo, por que não atacarmos em armas esses senhores da perdição, esses cardeais, esses papas, e toda essa cloaca da Sodoma romana que corrompem sem cessar a Igreja de Deus, e lavarmos as mãos em seu sangue? (Lutero, 'Epítome', 1520. Apud Will Durant, op. cit., p. 295.)
A 15 de junho de 1520, Leão X publicou a bula Exsurge Domine, que condenava 41 declarações de Lutero e ordenava a queima pública de suas obras, dando-lhe 60 dias de prazo para ir a Roma abjurar seus erros, caso contrário seria excomungado. Lutero não foi e publicou um livro em que traça um programa de reforma religiosa:

Passou-se o tempo de calar, chegou o tempo de falar, como diz Eclesiastes. De acordo com nosso propósito, reuni algumas propostas para a melhoria do estamento cristão, para apresentá-las à nobreza cristã da nação alemã, caso Deus queira ajudar à sua Igreja através dos leigos, uma vez que o clero, a quem isto caberia com mais razão, se descuidou disso por completo [...]Com muita astúcia os romanistas se circundaram de três muralhas, com que até agora se protegeram, de sorte que ninguém os pôde reformar, razão por que toda a cristandade decaiu terrivelmente. Em primeiro lugar: quando se os apertou com poder secular, determinaram e disseram que o poder secular não tem direito sobre eles, e sim o contrário: o eclesiástico estaria acima do secular. Segundo: quando se os quis censurar com base na Sagrada Escritura, eles objetaram dizendo que a ninguém cabe interpretar a Escritura senão ao papa. Terceiro: quando ameaçados com um concílio, inventam que ninguém pode convocar um concílio senão o papa. Assim nos roubaram às ocultas as três varas, para poderem ficar impunes, e tomaram lugar na segura fortaleza destas três muralhas, para praticar toda sorte de vilanias e maldades que agora vemos. (Lutero, 'Carta aberta à nobreza cristã da nação alemã sobre a Reforma do Estado Cristão', agosto de 1520. Apud Martinho Lutero, Obras completas, v. 2, p. 279-81.)
Na sequência do documento, Lutero estabelece que não há verdadeira diferença entre o clero e a laicidade*, que qualquer cristão pode interpretar as Escrituras segundo suas próprias luzes e mostra que a Escritura não oferece justificativa alguma para o direito exclusivo do papa de convocar um concílio:

[...] todos os cristãos são verdadeiramente de estamento espiritual, e não há qualquer diferença entre eles a não ser exclusivamente por força do ofício [...] Assim pois todos nós somos ordenados sacerdotes através do Batismo [...]É por isto que, em caso de necessidade, cada um pode batizar e absolver, o que não seria possível se não fôssemos todos sacerdotes [...] Daí se segue que leigos, sacerdotes, bispos ou, como dizem, espirituais e seculares no fundo verdadeiramente não têm qualquer diferença senão em função do cargo ou da ocupação. Além disso, todos nós somos sacerdotes, como está dito acima. Todos temos uma fé, o mesmo Evangelho, o mesmo sacramento. Como não haveríamos de ter também o poder de perceber e de julgar o que seria correto ou incorreto na fé? (Id., ibid., p. 282.)
Lutero excomungado

Em 3 de janeiro de 1521, o papa excomungou-o definitivamente por intermédio da bula Decet Romanum Pontificem. Lutero recebe o apoio dos príncipes alemães, que viam na Reforma a possibilidade de romper com a submissão financeira a Roma e tomar as propriedades da Igreja na Alemanha:

Alguns calcularam que todos os anos mais de 300.000 florins encontram o caminho da Alemanha para a Itália. Aqui chegamos ao âmago da questão. Por que é que os alemães têm de suportar tal assalto e tal extorsão de suas propriedades para as mãos do papa? (Lutero, 'Carta aberta à nobreza cristã da nação alemã sobre a Reforma do Estado Cristão', agosto de 1520. Apud Will Durant, op. cit., p. 296.)
Os príncipes tinham muito a ganhar com isso, uma vez que a Igreja Católica alemã era excepcionalmente rica:

A avareza, pecado habitual da época, transparecia entre o clero de todas as ordens e condições, em seu afã de aumentar ao máximo todas as rendas e aluguéis, taxas e emolumentos. A Igreja alemã era a mais rica da cristandade. Todo mundo sabia que quase um terço da propriedade territorial do país estava nas mãos da Igreja, o que tornava ainda mais condenável as autoridades eclesiásticas quererem aumentar sempre suas posses. Em muitas cidades os edifícios e instituições clericais cobriam a maior parte do terreno. (Johannes Janssen, Catholic Encyclopedia, s.d. Apud Will Durant, op. cit., p. 277.)

Os sete morros de Olinda


Matéria do Le Monde publicada no site do UOL.

Os sete morros de Olinda

Véronique Mortaigne
Enviada especial a Olinda-PE



Olinda não é Roma, mas dizem da cidade tropical que ela tem sete morros. A contagem não é fácil, pois, em meio ao clima dominado pelo eterno embalo do vento, os coqueiros, as mangueiras e as frutas-pães confundem a exatidão topográfica. Olinda é tricolor: verde (as árvores), azul (o mar) e branca (os conventos).

Olinda é tão pagã e dissipada quanto religiosa; nela, as religiões, católica, protestante, judaica, vodu, etc., parecem tão diluídas que isso acaba se tornando um sentimento. Sobre um morro, a catedral da Sé (cuja construção foi iniciada em 1537); sobre um outro, o seminário franciscano. Do outro lado, o farol erguido nos anos 1950, preto e branco, baixinho, nostálgico, firmemente plantado e indestrutível, uma espécie de "Cinema Paradiso" do ponto de vista marítimo.

Em 1860, Emmanuel Liais, um astrônomo francês fissurado por Marte que se apaixonara pelas redondezas e as curvas olindenses, havia instalado seu observatório sobre o Alto da Sé. Nele, ele descobrira um cometa, historicamente o primeiro a ser observado em caráter oficial no Brasil, e que ele batizara de cometa Olinda, até o dia em que ele resolveu dedicar-se à botânica. Todas as frutas de nomes indígenas, caju, pitomba, jabuticaba, pitanga, mamão, goiaba, graviola, maracujá... (o qual deve ser tomado em forma de suco) fascinaram os europeus, que, no decorrer das ocupações coloniais e das missões científicas, trouxeram nas suas bagagens desenhistas e naturalistas. Assim, o holandês Maurício de Nassau, que se instalou em Pernambuco onde permaneceu de 1630 a 1665, havia confiado aos seus compatriotas Frans Post e Albert Eckhout a missão de desenharem e gravarem este Brasil tão luxuriante.

Em meio ao ambiente suave quase místico que Olinda mantém nos seus bistrôs, contam que num belo dia de 1947 uma linda organista de traços indígenas ofereceu um suco de graviola para um jovem franciscano alemão que havia desembarcado recentemente para viver no convento de São Francisco. Que em decorrência deste gesto de pura bondade, eles se casaram; que ele se tornou contador numa usina de cana-de-açúcar e que eles tiveram uma filha totalmente brasileira chamada Hildegarde.

Alguns anos atrás, o Comitê de festas de Olinda, cidade que possui o mais célebre dos carnavais de ruas do Brasil junto com o de Salvador da Bahia, havia organizado os desfiles da Terça-feira Gorda sobre o tema das obras de Eckhout: abacaxis gigantes, mulheres índias planturosas, guerreiros armados com flechas, peixes-gatos, linces e cobras. A fauna e a flora deambulavam nas vielas pavimentadas, cutucando as concavidades das encostas, organizando a confusão sobre os promontórios ao cruzarem com as marionetes gigantes do frevo (com fanfarras e tudo) e com os grupos negros de maracatu (com os seus tambores).

Contar os morros nessas condições é um desafio. O músico e cantor Alceu Valença, um famoso olindense, prefere as imagens da estética feminina à cartografia detalhada. A respeito da sua cidade, ele compôs um "Sonho de Valsa", música que celebra um diálogo de paz com aquela que ele chama de "a minha mulher": "Tu és linda / Pra mim és ainda / Minha mulher / Calada / O silêncio rompe a madrugada".

Por sua vez, Gilberto Freyre (1900-1987), um escritor e sociólogo, estava em busca da precisão. Autor de um dos livros fundadores do pensamento moderno brasileiro, "Casa Grande e Senzala" (1933), ele recenseou oito morros em Olinda. Em 1944, ele também escreveu um muito poético "Guia de Olinda", cuja sexta edição acaba de ser publicada. Esta obra nunca saiu de moda, apesar dos avanços do progresso e da construção civil no Brasil moderno, que não prejudicaram a antiga cidade. Fundada em 1537 pelos portugueses, a cidade, que está classificada no patrimônio mundial pela Unesco desde 1982, deveria o seu nome à exclamação de um serviçal de Duarte Coelho, o colonizador: "Oh! Linda!", teria exclamado o comovido ajudante, contemplando do alto dos morros o oceano de reflexos de esmeralda.

Os engenhos

Olinda pertence à aristocracia brasileira das cidades "históricas": Ouro Preto, o ouro e o barroco das Minas Gerais, no centro; Parati, o refúgio dos piratas, ao sul; Alcântara, no Maranhão, o sonho de conquista do rio Amazonas... Durante dois séculos, quando foi a capital do Estado do Pernambuco, Olinda fez frutificar sua riqueza com o comércio da cana-de-açúcar. Esta era cultivada pelos escravos vindos da África, nas lavouras dos engenhos, as fazendas nos arredores da cidade, das quais muitos dos proprietários eram judeus portugueses. Estes haviam sido convertidos à força ao catolicismo em 1497, e obrigados a partirem para as colônias - recentemente, foi restaurada no Recife aquela que fora a primeira sinagoga das Américas.

A cidade apresenta feições arquitetônicas do barroco tardio português, além das marcas da passagem dos holandeses. Esses últimos, vindos como colonizadores concorrentes, saquearam a torto e a direito antes de passarem a atuar como civilizadores. O Convento São Francisco, o primeiro convento franciscano do Brasil, construído em 1577 e que desaparecera num incêndio, fora reconstruído entre 1615 e 1630, desta vez com o acréscimo de esplêndidos azulejos nos quais é contada a história colonial e a vida de são Francisco.

Olinda foi uma espécie de Coimbra - a grande cidade universitária de Portugal - brasileira. Em 1627, o padre Antonio Vieira (1608-1697), o mais célebre dos pregadores jesuítas, um defensor dos povos indígenas e dos escravos africanos, ensinou a retórica na então capital pernambucana - ele tinha apenas 18 anos, então. Mais tarde, a cidade abrigou a Escola Superior de Direito, que atuou em favor da evolução do Brasil imperial rumo à República.

Nela, o arcebispado até hoje tem a sua sede. Dom Helder Câmara (1909-1999), o bispo "vermelho", defensor dos sem-terra e um opositor fervoroso à ditadura militar, tomava a frente de procissões no meio da gente simples. Aliás, como santo padroeiro Olinda escolheu o "povorello", o pobrinho, Francisco de Assis. O pregador do sermão aos pássaros é atualmente representado por meio de estatuetas de terra cozida.

O antigo mercado de escravos

Os moleques brincalhões costumam conduzir os turistas até as bancas de artesanato, na frente da catedral ou na Ribeira, o antigo mercado de escravos. Eles têm uma lábia expressiva e agitada, o olhar atrevido. Num instante, eles desaparecem no meio das vielas coloridas. Para eles, o Nordeste inventou um excelente doce de mandioca com castanha de caju, o muito bem chamado pé-de-moleque, que sem dúvida deve o seu nome à sua cor marrom escuro e à sua aparência um pouco rústica e queimada.

Ao anoitecer, os ruídos de Olinda se sobrepõem às histórias: cânticos que transpiram das igrejas, tambores e fanfarras dos ensaios carnavalescos, cantos das rãs e dos grilos, gritos do vendedor de tapioca (bolinhos à base de mandioca) ou de cocadas.

Olinda forma então um todo do qual nada pode ser dissociado. "Não há apenas as árvores que convivem numa excepcional intimidade com as igrejas antigas. Há também os pássaros e as crianças", escreveu Gilberto Freyre, oferecendo a seguinte explicação, absolutamente olindense: "Tudo isso é por causa da luz, que permite que a natureza refresque constantemente a tradição".

Tradução: Jean-Yves de Neufville

terça-feira, junho 10, 2008

2º BIMESTRE: Erasmo de Rotterdam — A crítica dentro da Igreja


Durante os séculos XV e XVI, inúmeros padres e monges levantaram sua voz criticando a Igreja e propondo a convocação de concílios para encaminhar reformas. Muitos deles criticaram severamente a Igreja, mas permaneceram sempre dentro dela, sem chegar ao rompimento com Roma. Erasmo de Rotterdam (1466-1536) foi um desses homens. Desde cedo participou do movimento dos Irmãos da Vida Comum, que buscava um ideal de piedade e desprezo ao mundo. Posterior¬mente, tornou-se monge agostiniano, bacharel e professor de Teologia. Erasmo combatia a venda das indulgências e o comércio de objetos sacros (simonia):

Que diria Jerônimo se pudesse ver o leite da Virgem exibido por dinheiro, recebendo tanta veneração quanto o corpo consagrado de Cristo; os óleos milagrosos; os fragmen¬tos da verdadeira cruz, suficientes, se fossem reunidos, para fabricar um grande navio? Aqui temos o capuz de São Francisco, ali a saia de Nossa Senhora, ou o pente de Santa Ana... não apresentados como auxiliares inocentes da religião, e sim como a substância própria da religião — e tudo pela avareza dos padres e hipocrisia dos monges que brin¬cam com a credulidade do povo. (Erasmo, Novum Testamentum omne, diligenter ab Erasmo Rot. recognitum at Emendatum, 1518. Apud Will Durant, op. cit., p. 239.)

Erasmo defendia a tradução da Bíblia para as línguas nacionais e sua leitura por todos os cristãos:

Gostaria que a mais fraca mulher lesse os Evangelhos e as Epístolas de São Paulo [...] Gostaria que essas palavras fossem traduzidas para todas as línguas, afim de que não só os escoceses e irlandeses, como também turcos e sarracenos pudessem lê-las. Anseio por que o lavrador as cante para si mesmo quando acompanha o arado, o tecelão as murmure ao som de sua lançadeira, que o viajante iluda com elas a monotonia da jornada. (Id.,ibid.,p. 240-1.)
O elogio da loucura

Muitos de seus escritos foram redigidos em tom satírico, entre eles O elogio da loucura, em que se louva a necessidade da loucura e a tolice da sabedoria no mundo:


Rivais dignos dos príncipes, os soberanos pontífices, os cardeais e os bispos [...] Hoje, os bispos apenas se preocupam em apascentar-se a si próprios, deixam o cuidado do rebanho a Cristo. Esquecem que a palavra bispo significa trabalho, vigilância, solicitude. Servem-se apenas de tais qualidades quando pretendem recolher dinheiro. [...] Se os Sumos Pontífices, que estão no lugar de Cristo, se esforçassem por imitá-lo na pobreza, nos trabalhos, na sabedoria, no sofrimento e no desprezo pelas coisas terrenas, não seriam eles os mais infelizes de todos os homens ? Quantas comodidades não perderiam, se um dia a sabedoria os penetrasse. Vede quantas riquezas, honras, troféus, ofícios, dispensas e impostos, indulgências, cavalos, mulas, guardas e prazeres. Ora, tudo deveria ser substituído pelos jejuns, vigílias, lágrimas, orações, sermões, estudos e penitências e mil outros incómodos enfadonhos. (Erasmo, O elogio da loucura, 1511, p. 117-9.)

Um ano após a morte do papa Júlio II, Erasmo publicou um diálogo de São Pedro com o papa na tentativa de entrada no céu:

Júlio: Basta. Sou Júlio, o ligurino*, P.M. ...
Pedro: P.M.! Que é isso? Pestis máxima ?
J: Pontifex Maximus, seu velhaco.
P: Se você é três vezes Maximus... não poderá entrar aqui se não for também Optimus.
J: Impertinência! Você, que não foi mais do Sanctus em todas essas eras — e eu Sanctissimus, Sanctissimus Dominus, Sanctitas, a própria Santidade, com bulas* para prová-lo.
P: Não há diferença entre ser santo e ser chamado Santo?... Deixe-me olhar um pouco mais de perto. Hum! Sinais de impiedade em abundância... Batina de padre, mas armadura ensanguentada por baixo; olhos ferozes, boca insolente, testa impenetrável, corpo cheio de cicatrizes de pecados, hálito carregado de vinho, saúde esgotada pela libertinagem. Ai, ameace quanto quiser, vou dizer-lhe quem é... É Júlio, o Imperador que voltou do inferno...
[...] P: Tem de mostrar seus méritos antes de entrar.
J: Que quer dizer por méritos?
P: Ensinou a verdadeira doutrina ?
J: Eu não. Estive ocupado demais com a guerra. Há monges para cuidar da doutrina [...]
P: E a respeito de Ferrara ?
J: [...] Eu queria o ducado de Ferrara para um filho que tinha, em que se poderia confiar que seria fiel à Igreja, e que acabava de apunhalar o cardeal de Pavia.
P: Como?Papas com esposas e filhos?
J: Esposas? Não, esposas não, mas por que não filhos?
P: Não haverá meio de remover um mau papa ?
J: Absurdo! Quem pode remover a mais alta de todas as autoridades ? Um papa só pode ser corrigido por um Concílio Geral, mas nenhum Concílio Geral pode ser convocado sem o consentimento do papa. Portanto, ele não pode ser deposto por crime algum. [...] Então, não quer abrir o portão?
P: Antes para qualquer outra pessoa do que para gente como tu...
J: Se não ceder, tomarei seu lugar à força. Neste momento estão fazendo uma bela destruição lá embaixo; em breve terei 60 000 fantasmas atrás de mim.
P: Oh, homem miserável! Oh, miserável Igreja! Não me surpreende que agora tão poucos se apresentem aqui pedindo para entrar, quando a Igreja tem tais governantes. [...]
(Erasmo, Iulius exclusus, 1514. Apud Will Durant, op. cit., p. 235-7.)

Fé e razão

No fundo, as idéias de Erasmo não constituem uma nova doutrina, mas uma tendência a uma religião simplificada, combinando fé e razão, baseada nas Escrituras, onde o livre exame das questões teológicas é possível a uma elite. A fé e a esperança nas capacidades do homem representam uma influência muito grande do humanismo renascentista, do qual Erasmo é um dos expoentes. O discurso de Erasmo tinha muito prestígio intelectual e encontrava audiência junto a papas, soberanos, intelectuais, homens de Estado, além de penetrar difusamente nos segmentos burgueses. Entretanto, tinha pouca penetração nos meios populares. No que se refere à salvação do homem, Erasmo defendia o livre-arbítrio:
[...] a verdade das Escrituras mostra a liberdade do homem de escolher entre o bem e o mal de acordo com sua vontade interior. A alma humana possui um poder de julgar e um poder de escolher. O pecado de Adão corrompeu a vontade e a inteligência humanas, mas não as anulou. [...] mesmo sem a graça podemos dirigir-nos para o bem, realizar obras moralmente boas e que merecem de Deus uma Graça santificadora. (Erasmo, De libero arbítrio, 1524. Apud Will Durant, op. cit., p. 363.)

De acordo com o pensamento renascentista, Erasmo afir-lava a bondade natural do homem:

Há uma razão em todo homem, e em toda razão uma tendência para o bem [...] O cachorro nasce para caçar; o pássaro para voar; o cavalo para correr; o boi para lavrar; assim o homem nasce para amar a prudência e as boas obras. A natureza do homem é uma inclinação, uma propensão profundamente instintiva para o bem. (Erasmo, De pueris statim ac libera-lites instituendis, 1529. Apud Will Durant, op. cit., p. 363.)
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Viajando muito pela Europa e pelo Sacro Império Romano-Germânico, Erasmo conheceu as idéias de Lutero. A 9 de setembro de 1517, Erasmo escreveu de Antuérpia, onde se encontrava, ao Cardeal de York, e numa das frases da carta diz: "Nesta parte do mundo temo que se esteja preparando uma grande revolução".