sábado, junho 14, 2008

2º BIMESTRE: Lutero e a Reforma Protestante na Alemanha


O Sacro Império Romano-Germânico

A Alemanha nesta época era constituída por uma série de territórios e cidades que possuíam administração independente e estavam ligados entre si numa forma que lembrava uma federação, reconhecendo apenas uma lealdade limitada ao chefe do Sacro Império Romano-Germânico. Alguns desses Estados — Baviera, Saxônia, Brandem-burgo, Áustria, Palatinado... — eram governados por duques, condes, margraves* ou outros senhores seculares; outros — Mogúncia, Halle, Colónia, Bremen, Estrasburgo, Salzburgo... — eram politicamente sujeitos, em graus variáveis, à autoridade de bispos e arcebispos. Por volta de 1460, uma centena de cidades havia recebido cartas de liberdade virtual de seus superiores leigos ou eclesiásticos. Os principados e as cidades livres enviavam representantes à Dieta Imperial, que debatia os problemas de todos. A Dieta de Eleitores era convocada para escolher o rei, e nela votavam o rei da Boêmia, o duque da Saxônia, o margrave de Brandemburgo, o conde palatino e os arcebispos de Mogúncia, Trier e Colônia. Essa escolha criava apenas um rei, que era reconhecido, depois de sagrado pelo papa, como imperador do Sacro Império Romano-Ger¬mânico. No fundo, essa organização se apresentava como uma frouxa associação entre Alemanha, Áustria, Boêmia, Holanda e Suíça.

A 15 de março de 1517, o papa Leão X promulgou a mais célebre de todas as indulgências: aquela que oferecia a remissão de todos os pecados a quem contribuísse para a construção da nova basílica de São Pedro em Roma, cuja obra havia sido iniciada pelo papa anterior,Júlio II. Reis e governantes de toda a Europa protestaram contra as constantes contribuições à Igreja de Roma, que empobreciam seus territórios. Onde os reis eram poderosos, o papa negociou com prudência: concordou que Henrique VIII retivesse um quarto dos lucros na Inglaterra, acertou a mesma coisa com Francisco I da França e concedeu um empréstimo ao rei Carlos I (que mais tarde vai ser o imperador Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico) contando com as coletas que seriam levantadas na Espanha. Na Alemanha, que não tinha uma monarquia forte para negociar e era extremamente próspera, o papa entrou em acordo com os Fugger, que eram banqueiros, e tentou extrair de lá todo o dinheiro que pudesse.

Lutero

Nesta época, Lutero era professor de Teologia na Universidade de Wittenberg. Nascido em Eisleben, em 1483, Lutero foi um aluno aplicado e recebeu, aos 22 anos, o grau de Doutor em Humanidades pela Universidade de Erfurt. Por influência do pai, começou a estudar Direito, mas logo desistiu e tornou-se monge. Essa decisão era fruto da atmosfera de inquietação, temores e angústia religiosa da época, que afetou profundamente Lutero, preocupado com a salvação de sua alma e com a tentação do pecado.

Durante os anos no convento e posteriormente como professor de Teologia na Universidade de Wittenberg, Lutero foi aperfeiçoando sua visão a respeito da salvação do homem e do pecado. Lutero era um admirador dos escritos de João Huss, herege queimado pela Igreja em 1415, especialmente de suas idéias sobre a liberdade da Igreja diante dos papas, sobre a liberdade de consciência individual diante do concílio e sobre a necessidade de reconduzir o mundo cristão à simplicidade apostólica. Numa carta de 1520, Lutero chega a afirmar que "todos somos hussitas sem o saber; São Paulo e Santo Agostinho são também perfeitos hussitas". (Lutero, carta de 1520. Apud Henry Kamen, Los caminos de la tolerância, p. 58.)

Lutero termina por convencer-se da impotência total e irremediável da vontade humana diante da onipotência da graça divina. O livre-arbítrio foi corrompido pelo pecado de Adão, e, por isso, somente a fé, que é a primeira das graças que Deus envia gratuitamente àqueles que escolheu, pode salvar-nos. As obras não têm importância para a salvação, elas são um simples sinal da graça de Deus. (...)

Estava iniciada a briga com Roma. As Noventa e Cinco Teses, escritas originalmente em latim, foram traduzidas para o alemão e tiveram ampla divulgação e aceitação. O papa Leão X ordenou a Lutero que fosse a Roma se retratar. Protegido por Frederico, Eleitor da Saxônia, Lutero encontrou-se em Augsburgo com o cardeal Cajetan (12 a 14 de outubro de 1518), enviado do papa, mas não se retratou.

Para o texto das 95 Teses de Lutero, sugiro a leitura do artigo do Professor Alexander Martins Vianna, na
Revista Espaço Acadêmico que analisa o documento e tem excelente qualidade.

Rompendo com Roma

Tendo recebido apoio de diversos lados, Lutero se decide a romper com a Igreja de Roma:

Atirei os dados. Agora desprezo a ira dos romanos tanto quanto sua proteção. Não me reconciliarei com eles por toda a eternidade[...] Eles que condenem e queimem tudo o que me pertence; em retribuição, farei o mesmo com eles [...] Agora já não tenho medo, e vou publicar um livro em língua alemã sobre a reforma cristã, dirigido contra o papa, em uma linguagem tão violenta como se me estivesse dirigindo ao Anticristo. (Lutero, carta a Spalatin, 1520. Apud Will Durant, op. cit., p. 295.)
Uma vez feito o rompimento, as críticas de Lutero ao papa e a toda a Cúria Romana aumentaram de intensidade:

Se Roma assim acredita e ensina com o conhecimento dos papas e cardeais (que eu espero não seja o caso), então nestes escritos declaro livremente que o verdadeiro Anticristo está sentado no templo de Deus e reina em Roma — essa Babilônia tinta de roxo — e que a Cúria Romana é a Sinagoga de Satanás [...] Se a fúria dos romanos assim continuar, não haverá outro remédio senão os imperadores, reis e príncipes, rodeados de força e armas, atacarem estas pestes do mundo, e não mais resolver o assunto com palavras e sim com a espada. [...] Se nós abatemos os ladrões com a forca, os salteadores com a espada, os hereges com o fogo, por que não atacarmos em armas esses senhores da perdição, esses cardeais, esses papas, e toda essa cloaca da Sodoma romana que corrompem sem cessar a Igreja de Deus, e lavarmos as mãos em seu sangue? (Lutero, 'Epítome', 1520. Apud Will Durant, op. cit., p. 295.)
A 15 de junho de 1520, Leão X publicou a bula Exsurge Domine, que condenava 41 declarações de Lutero e ordenava a queima pública de suas obras, dando-lhe 60 dias de prazo para ir a Roma abjurar seus erros, caso contrário seria excomungado. Lutero não foi e publicou um livro em que traça um programa de reforma religiosa:

Passou-se o tempo de calar, chegou o tempo de falar, como diz Eclesiastes. De acordo com nosso propósito, reuni algumas propostas para a melhoria do estamento cristão, para apresentá-las à nobreza cristã da nação alemã, caso Deus queira ajudar à sua Igreja através dos leigos, uma vez que o clero, a quem isto caberia com mais razão, se descuidou disso por completo [...]Com muita astúcia os romanistas se circundaram de três muralhas, com que até agora se protegeram, de sorte que ninguém os pôde reformar, razão por que toda a cristandade decaiu terrivelmente. Em primeiro lugar: quando se os apertou com poder secular, determinaram e disseram que o poder secular não tem direito sobre eles, e sim o contrário: o eclesiástico estaria acima do secular. Segundo: quando se os quis censurar com base na Sagrada Escritura, eles objetaram dizendo que a ninguém cabe interpretar a Escritura senão ao papa. Terceiro: quando ameaçados com um concílio, inventam que ninguém pode convocar um concílio senão o papa. Assim nos roubaram às ocultas as três varas, para poderem ficar impunes, e tomaram lugar na segura fortaleza destas três muralhas, para praticar toda sorte de vilanias e maldades que agora vemos. (Lutero, 'Carta aberta à nobreza cristã da nação alemã sobre a Reforma do Estado Cristão', agosto de 1520. Apud Martinho Lutero, Obras completas, v. 2, p. 279-81.)
Na sequência do documento, Lutero estabelece que não há verdadeira diferença entre o clero e a laicidade*, que qualquer cristão pode interpretar as Escrituras segundo suas próprias luzes e mostra que a Escritura não oferece justificativa alguma para o direito exclusivo do papa de convocar um concílio:

[...] todos os cristãos são verdadeiramente de estamento espiritual, e não há qualquer diferença entre eles a não ser exclusivamente por força do ofício [...] Assim pois todos nós somos ordenados sacerdotes através do Batismo [...]É por isto que, em caso de necessidade, cada um pode batizar e absolver, o que não seria possível se não fôssemos todos sacerdotes [...] Daí se segue que leigos, sacerdotes, bispos ou, como dizem, espirituais e seculares no fundo verdadeiramente não têm qualquer diferença senão em função do cargo ou da ocupação. Além disso, todos nós somos sacerdotes, como está dito acima. Todos temos uma fé, o mesmo Evangelho, o mesmo sacramento. Como não haveríamos de ter também o poder de perceber e de julgar o que seria correto ou incorreto na fé? (Id., ibid., p. 282.)
Lutero excomungado

Em 3 de janeiro de 1521, o papa excomungou-o definitivamente por intermédio da bula Decet Romanum Pontificem. Lutero recebe o apoio dos príncipes alemães, que viam na Reforma a possibilidade de romper com a submissão financeira a Roma e tomar as propriedades da Igreja na Alemanha:

Alguns calcularam que todos os anos mais de 300.000 florins encontram o caminho da Alemanha para a Itália. Aqui chegamos ao âmago da questão. Por que é que os alemães têm de suportar tal assalto e tal extorsão de suas propriedades para as mãos do papa? (Lutero, 'Carta aberta à nobreza cristã da nação alemã sobre a Reforma do Estado Cristão', agosto de 1520. Apud Will Durant, op. cit., p. 296.)
Os príncipes tinham muito a ganhar com isso, uma vez que a Igreja Católica alemã era excepcionalmente rica:

A avareza, pecado habitual da época, transparecia entre o clero de todas as ordens e condições, em seu afã de aumentar ao máximo todas as rendas e aluguéis, taxas e emolumentos. A Igreja alemã era a mais rica da cristandade. Todo mundo sabia que quase um terço da propriedade territorial do país estava nas mãos da Igreja, o que tornava ainda mais condenável as autoridades eclesiásticas quererem aumentar sempre suas posses. Em muitas cidades os edifícios e instituições clericais cobriam a maior parte do terreno. (Johannes Janssen, Catholic Encyclopedia, s.d. Apud Will Durant, op. cit., p. 277.)

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