domingo, junho 01, 2008

D. João VI no Correio Braziliense


Padre José Maurício Nunes Garcia, o melhor organista da corte, oxigenou a cena musical do Rio em 1808 Marcos Portugal chegou ao Brasil em 1810 e foi nomeado mestre-de-capela no lugar de Nunes Garcia

O Correio Braziliense é o jornal mais importante de Brasília e veio com uma série de matérias comemorativas dos seus 200 anos... ou dos 200 anos do primeiro jornal do Brasil, chamado de Correio Braziliense. Vou estar postando toda a série aqui. Esta é a sétima.

O mulato contra o português

Nahima Maciel
Da equipe do Correio

O repertório preparado pelo mestre-de-capela Marcos Portugal para o concerto de hoje na Capela Real está ao gosto de S.A.R e sua Augusta Família. A comédia napolitana, preferida de dom João VI, é a âncora de Portugal para montar os programas da capela. Os castrati italianos, importados logo que a corte foi transferida de Lisboa para o Rio de Janeiro, estão a postos para empostar suas vozes de soprano e os cenários burlescos para a música lírica italiana tão apreciada pela corte. Há anos Portugal faz ouvir suas vontades e seus egos na cena musical do Rio. Exige da Casa Real muito mais que suas necessidades musicais e consegue de S.A.R os favores mais estapafúrdios. Mas dom João acha o conterrâneo divertido. E lhe faz concessões. Portugal consegue, assim, ofuscar um brasileiro do qual pouco se ouve falar nos dias de hoje, um rival confesso e talentoso. Relegado a tímido assistente da Capela Real, o padre José Maurício Nunes Garcia pouco decide sobre os programas da casa. A ele não são concedidas vontades e é preciso percorrer recintos privados e íntimos para ouvir uma das centenas de suas brilhantes peças compostas na última década.

Há cinco anos, em 1808, Nunes Garcia era o principal responsável por oxigenar a cena musical do Rio. Vale lembrar a delicadeza do repertório montado para receber dom João VI e sua corte, em março daquele ano, por ocasião do desembarque real. Veio do padre-mestre o esforço para organizar a estrutura musical da Capela Real, quando o regente decidiu transferi-la da Igreja do Rosário para a Catedral do Carmo. Mas é a qualidade musical de Nunes Garcia a peça mais importante desse tabuleiro.

A música sacra de inspiração clássica do padre tem raízes no melhor da produção européia. Se o repertório de Portugal se presta a piruetas vocais típicas da música napolitana, apropriada à vaidade dos cantores e ao entretenimento do público, as pautas de Nunes Garcia se destacam pela sobriedade e simplicidade da massa vocal entoada pelos corais. O padre também orquestrou a primeira apresentação do Réquiem de Mozart no Brasil. “Esta primeira experiência foi tão bem-sucedida em todos os seus aspectos que esperemos que não seja a última”, reparou o compositor austríaco Sigismund Neukomm, radicado no Rio.

Agora voltemos a Portugal. Naquele mesmo 1808 em que o Rio via desembarcar dom João VI e sua corte em fuga das tropas de Napoleão Bonaparte, o compositor subia ao palco do Teatro São Carlos, em Lisboa, para dirigir uma ópera de autoria própria em comemoração ao aniversário do imperador francês. Também escreveu um Te Deum a pedido dos franceses que ocupavam Portugal, situação tão embaraçosa que, poucos meses depois, tratou de compor outra peça sacra para dom João VI. Portanto, causa estranheza a predileção de S.A.R por Marcos Portugal.

A preferência da corte é senhora dos palcos. E nos tempos atuais desta década de 1810 é ínfimo o espaço para um padre-mestre mulato, filho de uma descendente de escravos e um branco e, ele mesmo, pai de filhos, condição que em pouco beneficia o prestígio do mestre-de-capela. Mais vale o glamour do português de formação italiana, autor, é verdade, de óperas encenadas no Scala de Milão e no Odeon de Paris. São conhecidos do público os desafios protagonizados pelos dois compositores. Nesses, ficou notória a capacidade de improvisação de Nunes Garcia, o melhor organista da corte. As competições, no entanto, não impediram que o senhor Portugal viesse a dominar a cena musical palaciana.

Fonte: A música no Rio de Janeiro no tempo de D. João VI, de Vasco Mariz. Editora Casa da Palavra, 2008

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